Cada vez mais me convenço de que as Escrituras são um valioso registro de memórias...
Memórias inspiradas, reveladas, canonizadas, algumas convenientemente apagadas, modificadas, aumentadas ou a elas incorporando-lhes elementos estranhos...
Uma verdade gasta, conhecida não só pelos psicólogos, mas também por qualquer um que tenha prestado atenção ao comportamento de quem o rodeia, ou a seu próprio comportamento, é a de que a memória humana é um instrumento maravilhoso, mas falaz. Primo Levi escreveu que “quase nunca sucede que duas testemunhas oculares do mesmo fato o descrevam do mesmo modo e com as mesmas palavras, ainda que o fato seja recente e nenhum dos dois tenha interesse em deformá-lo.
Esta escassa confiabilidade de nossas recordações só será explicada, segundo Primo Levi, de modo satisfatório, quando soubermos em qual linguagem, em qual alfabeto elas são escritas, sobre qual material, com qual instrumento: ainda hoje, é uma meta de que estamos longe, segundo o autor.
E ele continua: “conhecem-se alguns mecanismos que falsificam a memória em condições particulares: os traumas, a interferência de outras recordações concorrentes, estados anormais da consciência, repressões, recalques... É certo que o exercício da evocação freqüente mantém a recordação fresca e viva, assim como se mantém eficiente um músculo exercitado muitas vezes; mas é também verdade que uma recordação evocada com excessiva freqüência, e expressa em forma narrativa, tende a fixar-se num estereótipo, numa forma aprovada pela experiência, cristalizada, aperfeiçoada, ataviada, que se instala no lugar da recordação não trabalhada e cresce à sua custa”...
Embora Primo Levi, judeu, químico por profissão, sobrevivente do Holocausto - termo utilizado especificamente para se referir ao extermínio de milhões de pessoas que faziam parte de grupos considerados indesejados pelo regime nazista de Adolf Hitler, refira-se `a volatividade de uma memória específica, ou seja, a vivenciada nos campos de concentração de Auschwitz, tomo-lhe respeitosamente algumas de suas palavras sobre a memória para concordar, junto a ele, que “quanto mais se afastam os eventos, mais se completa e aperfeiçoa a construção da verdade da conveniência”.
E ele acrescenta:
“A propósito dessas reconstruções do passado (mas não só dessas: é uma observação que vale para todas as memórias), deve-se observar que a distorção dos fatos muitas vezes é limitada pela objetividade dos próprios fatos, em torno dos quais existem testemunhos de terceiros, documentos, “corpos de delito”, contextos historicamente definidos. É geralmente difícil negar que se tenha cometido uma dada ação, ou que tal ação tenha ocorrido; ao contrário, é facílimo alterar as motivações que nos induzem a uma ação, assim como paixões que em nós acompanharam a ação mesma. Esta é a matéria extremamente sujeita a deformar-se sob forças até muito débeis; não existem respostas confiáveis, porque os estados de ânimo são voláteis por natureza, e ainda mais volátil é sua memória”(Os afogados e os sobreviventes, p.25)
As palavras de Primo Levi me fazem pensar no campo de abertura que se dá em torno das interpretações das memórias “sagradas”... teólogos, historiadores, arqueólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos, físicos, educadores... todos amparados por uma hermenêutica específica que lhe dê conta de penetrar nos recônditos de uma memória "viva", porque também se tornou registro – refiro-me especificamente às narrativas bíblicas- , e tentar explicar o que, por vezes, é inexplicável, incompreensível, absoluto, resumido, poético, a-histórico, a-temporal, ilógico, irracional , devaneio e até mesmo loucura...
Como crer nas Escrituras? Como confiar-lhe credibilidade, autenticidade? Como não considerar os inúmeros “acidentes” de uma tradução a outra? É possível confiar em seus autores e, mais ainda, nas “paixões” que acompanharam as suas ações, digo, os seus registros memorialísticos?
Perguntas sem respostas... a não ser se esta escassa confiabilidade à memória registrada nas Escrituras for explicada, de modo satisfatório, se soubermos em qual linguagem, em qual alfabeto elas são escritas, sobre qual material, com qual instrumento... Meta esta que ainda hoje, parafraseando inversamente Primo Levi, pode ser alcançada, se entendermos os limites humanos da hermenêutica, da fenomenologia, da exegese, da historiografia, das fórmulas, das leis físicas e, num “num salto de fé”, mergulharmos no Absoluto Absurdo da Revelação que achou aconchego na consciência humana.
Vanessa