sábado, 9 de junho de 2012

Em Vergonha


Fim de tarde. Um dia diferente para aqueles meninos e meninas, de pés cansados, pés descalços, pés trincados pela poeira  vermelha, do chão batido, do caminho entre a casa e a escola... 

Para esses pés, mãos amigas...

Mãos que se doam...

Mãos que lavam...

Mãos que calçam...

Mãos solidárias...

Abandonar o chinelinho gasto para calçar um tênis confortável, doado por corações generosos, traz alegria, anima o coração, aquece a alma dos  pequeninos.... mas sobretudo daqueles que se dispõem a servir em amor...

Mãos que abraçam a vergonha e a culpa...

Nos campos de concentração de Auschwitz, aqueles que conseguem sobreviver à tragédia, provam de uma inexplicável vergonha... Uma vergonha, nutrida pelo sentimento de culpa. Culpa? Vergonha? Por que haveria de se envergonhar aqueles que sobreviveram? A quem compete julgá-los?

O embaraço do sobrevivente é a impossibilidade de superar a vergonha...

Vergonha e culpa por assistir a destruição dos outros, sentindo, contra qualquer julgamento, que deveria ter intervido, sentindo-se culpa por não tê-lo feito e, acima de tudo, “sentindo-se culpado por ter frequentemente ficado feliz por não ter sido ele a morrer, uma vez que não se tinha o direito de esperar ser o único poupado” (B. Bttelheim)

Vivo, portanto, sou culpado... Uma aporia a que Wiesel compendiou, acrescentando logo depois: “Estou aqui porque um amigo, um companheiro, um desconhecido morreu em meu lugar”...

Primo Levi, sobrevivente dos campos de concentração, em um poema no qual tenta fugir da culpa que  o persegue, assim escreve: “ Você não defraudou ninguém, não espancou (mas teria força para tanto?), não aceitou encargos (mas não lhe ofereceram...), não roubou o pão de ninguém; no entanto, é impossível evitar. É só uma suposição ou, antes, a sombra de uma suspeita: a de que cada qual seja o Caim do seu irmão e cada um de nós (mas desta vez digo “nós”num sentido muito amplo, ou melhor, universal, tenha defraudado seu próximo, vivendo em lugar dele?

Calçar os pés desses pequeninos, desses meninos e meninas que vivem emcampos de concentração a céu aberto - expressão de Edson Passeti para descrever os lugares de desolação onde prevalece a miséria extrema e o abandono do Poder Público – faz-nos companheiros de vergonha e constrangimento daqueles que sobreviveram à tragédia do Holocausto. 
Vergonha por saber que depois do tênis limpinho, farão o caminho de volta entre a escola e a casa, entre poeiras e esgotos fétidos e, em poucos dias, voltarão de pés descalços...

Vergonha por saber que este gesto ainda é imensamente menor do que a necessidade...

Vergonha por saber das privações que passam e agradecer: “Senhor, obrigada porque não sou eu”...

Oh, Deus, que essa vergonha nos anime à culpa necessária para continuarmos a nos constranger com o Seu Amor... incomparavelmente maior...