quarta-feira, 23 de janeiro de 2013





Infância: o poço do ser

Para Gaston Bachelard, toda infância é, naturalmente fabulosa. Mas não são com as fábulas fósseis, com os fósseis de fábulas que os avós contam que vive a imaginação da criança: é nas suas próprias fábulas, “é no seu próprio devaneio que a criança encontra as suas fábulas, fábulas que ela não conta a ninguém.” [1] Então, se a fábula é a própria vida, que diferença faz se uma história inventada por uma criança é um acontecimento ou  pura imaginação? Tanto uma quanto a outra evocam o mesmo sentido: a própria vida.
Contudo, a fábula tem uma linguagem própria, e para redescobrir a linguagem das fábulas, segundo Bachelard, “ é necessário participar do existencialismo do fabuloso, tornar-se corpo e alma de um ser admirativo, substituir diante do mundo a percepção pela admiração. Admirar para receber os valores daquilo que se percebe.” [2]
É nessa perspectiva bachelardiana que busquei compreender o “existencialismo do fabuloso”. Se crianças são seres fabulosos porque criam suas próprias histórias, que linguagem poderia decifrá-las e interpretá-las? Que valor as crianças agregam a cada história contada ou inventada? Para o escritor francês, apreender a essência, compreender as linguagens, “acolher na sua atualidade pessoal a poesia dos devaneios de infância é muito diferente dos exames objetivos, tão úteis dos psicólogos da criança”. Mas ainda que se deixe falar livremente a criança, mesmo observando-a sem censura, ainda que se exercite a escuta com terna paciência de um psicanalista, não se atinge necessariamente a pureza simples do exame fenomenológico. É preciso ir além... abrir mão de métodos comparativos, tornar a criança incomparável, assim como a mãe vê o seu próprio filho![3]
Todavia, para Bachelard, somos demasiado instruídos para permitir um olhar menos objetivo e desobrigado de qualquer método comparativo. Nós, adultos, empanturramos as crianças de sociabilidade, (...) preparamo-la para sua vida de homem no ideal dos homens estabilizados; instruímo-la também na história de sua família e, tragicamente, empurramos no espremedor essa infância-massa para que a criança siga direitinho o caminho dos outros. [4]  
Em nossa objetividade, por meio de métodos científicos e racionais, tentamos explicar os fenômenos que acometem a  infância em suas complexas e profundas nuances. Pretensão demasiada de intelectuais e acadêmicos que acreditam chegar à compreensão do que se passa na subjetividade humana, quanto mais na subjetividade da infância!
 “Crianças, nos são mostradas tantas coisas que perdemos o senso profundo de ver!”[5]. Essa é a advertência de Bachelard , a qual revela um caminho a compreender: a infância é o poço do ser. Poço, lugar de mistérios, de escuridão, de segredos incontidos, de águas longínquas... Lugar-poço de onde não se espera nada, mas que pode fazer brotar a água que refresca a vida e acalma o ser.
Para conseguir compreender a linguagem das crianças é preciso mergulhar no mais profundo do nosso ser, conforme Bachelard, para que, a partir deste olhar-infância me seja possível exercitar o senso profundo de ver. Ver com outras lentes o invisível, o incontido, o que facilmente não se revela. Ver o mundo em suas cores primeiras, o mundo ilustrado, com suas cores verdadeiras. Ver sem os olhos do adulto míope que escolheu não enxergar.
  Se é verdade, então, que “uma criança coexiste conosco numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro”, é nesse devir-criança, marcado pela singularidade do encontro entre as temporalidades da infância e da vida adulta que pretendo estar.   
Devaneando sobre a minha infância lembro-me do lugar onde morava: minha casa era a única da rua, cercada por oficinas e bordeis. Todas as noites vislumbrava o movimento dos homens com suas prostitutas, as bebedeiras, a presença intensa da polícia a vigiar e a controlar os que se exaltavam ou se envolviam em alguma briga. Eram muitas as prostitutas que tinham filhos, muitos dos quais não conheciam o pai ou tinham o pai na prisão.
 Minha mãe nunca me impediu de com eles brincar. Ao contrário, dizia que o meu amor deveria  salvá-los de seus destinos e de seus equívocos. Vez ou outra ela levava uma criança pra dentro de casa, dava banho, comida, às vezes o deixava dormir. Os gestos amorosos de meu pai e de minha mãe são devaneios profundos e indeléveis que jamais irão se apagar.  Encontrando-me com a criança que outrora fui, recordo-me da compreensão que tinha do distanciamento entre a minha infância e a desses meninos. Indignação! Este era o sentimento que me movia ao perceber a dureza da vida daquelas crianças que sonhavam com um destino melhor. Lembro-me de adentrar naqueles bordeis sujos, iluminados por uma penumbra vermelha que dava sentido àquela ambiência de promiscuidade, mas que, paralelamente abrigava um universo infantil, escondido da vigilância policial e daqueles que poderiam denunciar.      
Todavia, ainda que compreendendo tamanho distanciamento entre as infâncias, estes meninos eram, para mim, apesar dos estigmas que insistiam em marcá-los - pobres, desamparados, filhos de prostitutas com presidiários - simplesmente crianças! Ouço novamente a advertência de Bachelard: “ Ai de quem não pode se lembrar de sua infância, reabsorvê-la em si mesmo, como um corpo no seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: está morto desde que ela o deixou.” [6]
Viver novamente a criança que fui, cultivar a criança que habita em mim é condição sine qua non para ousar entender as crianças que passaram por mim, seja em que temporalidade for. Nesse sentido, a criança que coexiste em mim, bem como os devaneios da minha própria infância constituir-se-á em uma nova forma de ver o profundo e o velado que revestem essas infâncias roubadas, com as quais tive o privilégio e, ambiguamente, a agonia, de conviver.
E é por esta razão que Jesus, compreendendo tão profundamente o ser criança, disse aos seus discípulos que perguntaram quem seria o maior no Reino dos Céus:
Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: " Eu asseguro que, a não ser que vocês se convertam e tornem como crianças, jamais entrarão no Reino Dos Céus. Portanto, quem se fizer humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos Céus. Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo" (Palavras de Jesus, em Mateus 18)
Que sejamos crianças.....

Vanessa

  



[1] BACHELARD, Gaston. Os devaneios voltados para a infância. In: A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.113.
[2] Ibid.
[3] BACHELARD, Gaston. Os devaneios voltados para a infância. In: A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.101-102.
[4] Ibid
[5] Ibid, p.122.
[6] BACHELARD, Gaston. Os devaneios voltados para a infância. In: A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.130.