Para Gaston Bachelard, toda infância é, naturalmente fabulosa. Mas não
são com as fábulas fósseis, com os fósseis de fábulas que os avós contam que
vive a imaginação da criança: é nas suas próprias fábulas, “é no seu próprio
devaneio que a criança encontra as suas fábulas, fábulas que ela não conta a
ninguém.” [1] Então,
se a fábula é a própria vida, que diferença faz se uma história inventada por
uma criança é um acontecimento ou pura
imaginação? Tanto uma quanto a outra evocam o mesmo sentido: a própria vida.
Contudo, a fábula tem uma linguagem própria, e para redescobrir a
linguagem das fábulas, segundo Bachelard, “ é necessário participar do
existencialismo do fabuloso, tornar-se corpo e alma de um ser admirativo,
substituir diante do mundo a percepção pela admiração. Admirar para receber os
valores daquilo que se percebe.” [2]
É nessa perspectiva bachelardiana que busquei compreender o
“existencialismo do fabuloso”. Se crianças são seres fabulosos porque criam
suas próprias histórias, que linguagem poderia decifrá-las e interpretá-las? Que
valor as crianças agregam a cada história contada ou inventada? Para o escritor
francês, apreender a essência, compreender as linguagens, “acolher na sua
atualidade pessoal a poesia dos devaneios de infância é muito diferente dos
exames objetivos, tão úteis dos psicólogos da criança”. Mas ainda que se deixe
falar livremente a criança, mesmo observando-a sem censura, ainda que se
exercite a escuta com terna paciência de um psicanalista, não se atinge
necessariamente a pureza simples do exame fenomenológico. É preciso ir além...
abrir mão de métodos comparativos, tornar a criança incomparável, assim como a
mãe vê o seu próprio filho![3]
Todavia, para Bachelard, somos demasiado instruídos para permitir um
olhar menos objetivo e desobrigado de qualquer método comparativo. Nós,
adultos, empanturramos as crianças de sociabilidade, (...) preparamo-la para
sua vida de homem no ideal dos homens estabilizados; instruímo-la também na
história de sua família e, tragicamente, empurramos no espremedor essa
infância-massa para que a criança siga direitinho o caminho dos outros. [4]
Em nossa objetividade, por meio de métodos científicos e racionais,
tentamos explicar os fenômenos que acometem a
infância em suas complexas e profundas nuances. Pretensão demasiada de
intelectuais e acadêmicos que acreditam chegar à compreensão do que se passa na
subjetividade humana, quanto mais na subjetividade da infância!
“Crianças, nos são mostradas
tantas coisas que perdemos o senso profundo de ver!”[5]. Essa
é a advertência de Bachelard , a qual revela um caminho a compreender: a
infância é o poço do ser. Poço, lugar de mistérios, de escuridão, de segredos
incontidos, de águas longínquas... Lugar-poço de onde não se espera nada, mas que
pode fazer brotar a água que refresca a vida e acalma o ser.
Para conseguir compreender a linguagem das crianças é preciso mergulhar
no mais profundo do nosso ser, conforme Bachelard, para que, a partir deste
olhar-infância me seja possível exercitar o senso profundo de ver. Ver com
outras lentes o invisível, o incontido, o que facilmente não se revela. Ver o
mundo em suas cores primeiras, o mundo ilustrado, com suas cores verdadeiras. Ver
sem os olhos do adulto míope que escolheu não enxergar.
Se é verdade, então, que “uma criança coexiste
conosco numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de
desterritorialização que nos arrasta a ambos – contrariamente à criança que
fomos, da qual nos lembramos ou fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é
o futuro”, é nesse devir-criança, marcado pela singularidade do encontro entre
as temporalidades da infância e da vida adulta que pretendo estar.
Devaneando sobre a minha infância lembro-me do lugar onde morava: minha
casa era a única da rua, cercada por oficinas e bordeis. Todas as noites
vislumbrava o movimento dos homens com suas prostitutas, as bebedeiras, a
presença intensa da polícia a vigiar e a controlar os que se exaltavam ou se
envolviam em alguma briga. Eram muitas as prostitutas que tinham filhos, muitos
dos quais não conheciam o pai ou tinham o pai na prisão.
Minha mãe nunca me impediu de com
eles brincar. Ao contrário, dizia que o meu amor deveria salvá-los de seus destinos e de seus equívocos.
Vez ou outra ela levava uma criança pra dentro de casa, dava banho, comida, às
vezes o deixava dormir. Os gestos amorosos de meu pai e de minha mãe são
devaneios profundos e indeléveis que jamais irão se apagar. Encontrando-me com a criança que outrora fui,
recordo-me da compreensão que tinha do distanciamento entre a minha infância e
a desses meninos. Indignação! Este era o sentimento que me movia ao perceber a
dureza da vida daquelas crianças que sonhavam com um destino melhor. Lembro-me
de adentrar naqueles bordeis sujos, iluminados por uma penumbra vermelha que
dava sentido àquela ambiência de promiscuidade, mas que, paralelamente abrigava
um universo infantil, escondido da vigilância policial e daqueles que poderiam
denunciar.
Todavia, ainda que compreendendo tamanho distanciamento entre as
infâncias, estes meninos eram, para mim, apesar dos estigmas que insistiam em
marcá-los - pobres, desamparados, filhos de prostitutas com presidiários -
simplesmente crianças! Ouço novamente a advertência de Bachelard: “ Ai de quem
não pode se lembrar de sua infância, reabsorvê-la em si mesmo, como um corpo no
seu próprio corpo, um sangue novo no sangue velho: está morto desde que ela o
deixou.” [6]
Viver novamente a criança que fui, cultivar a criança que habita em mim é
condição sine qua non para ousar entender
as crianças que passaram por mim, seja em que temporalidade for. Nesse sentido,
a criança que coexiste em mim, bem como os devaneios da minha própria infância
constituir-se-á em uma nova forma de ver o profundo e o velado que revestem
essas infâncias roubadas, com as quais tive o privilégio e, ambiguamente, a
agonia, de conviver.
E é por esta razão que Jesus, compreendendo tão profundamente o ser criança, disse aos seus discípulos que perguntaram quem seria o maior no Reino dos Céus:
Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: " Eu asseguro que, a não ser que vocês se convertam e tornem como crianças, jamais entrarão no Reino Dos Céus. Portanto, quem se fizer humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos Céus. Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo" (Palavras de Jesus, em Mateus 18)
Que sejamos crianças.....
Vanessa
E é por esta razão que Jesus, compreendendo tão profundamente o ser criança, disse aos seus discípulos que perguntaram quem seria o maior no Reino dos Céus:
Jesus, chamando uma criança, colocou-a no meio deles, e disse: " Eu asseguro que, a não ser que vocês se convertam e tornem como crianças, jamais entrarão no Reino Dos Céus. Portanto, quem se fizer humilde como esta criança, este é o maior no Reino dos Céus. Quem recebe uma destas crianças em meu nome, está me recebendo" (Palavras de Jesus, em Mateus 18)
Que sejamos crianças.....
Vanessa
[1] BACHELARD, Gaston. Os devaneios voltados para a
infância. In: A poética do devaneio.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.113.
[2] Ibid.
[3] BACHELARD, Gaston. Os devaneios voltados para a
infância. In: A poética do devaneio.
São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.101-102.
[4] Ibid
[5] Ibid,
p.122.